segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

As Vozes da Mente

Quantas alternativas nossas mentes oferecem? E dessas alternativas, quais iremos escolher para obter aquilo que desejamos? Todo mundo é capaz de imaginar todo o tipo de coisa, e algumas pessoas vão adiante, assim obedecendo aos mandamentos incontroláveis que criamos dentro de nossas cabeças: os mandamentos do desejo. Mas o que vai determinar o quanto abriremos de espaço para que nossas cobiçosas vozes internas apontem a direção, depende apenas do quanto queremos a direção apontada, e de quanta coragem teremos para nos deixarmos levar por elas, aceitando assim todas as suas conseqüências. A verdade é que, o que vai diferenciar uma pessoa da outra, são somente as alternativas que elas vão ou não seguir. Pois, na essência, somos todos os mesmos, lutando, da melhor maneira que encontramos, para ter nossos desejos saciados.

Uma voz na mente de David Deeper disse-lhe para proceder sem hostilidades. Uma segunda voz tentava convencê-lo a pular de sua cadeira, com toda a ira, e quebrar o pescoço da vítima. A terceira voz, que parecia ser derivada de um acordo entre as duas primeiras, ordenou-o que batesse na mesa raivosamente, só para ver que reação isso iria causar – e assim o fez. Um barulho metálico soou, repercutindo por toda a sala de interrogatórios.
– Isto não o ajuda – disse Susana Mendes, detetive da polícia. – Você andou afirmando que escuta algumas vozes dentro de sua cabeça? Hum... certo. Mas você espera mesmo que isso sirva como pretexto para ter estuprado e matado Catherine Camel?
– Eu não fiz nada! – David gritou. – Será que vocês não entendem isso?!
– Está sendo repetitivo. Você foi encontrado no local do crime; suas digitais foram encontradas na faca; marcas de unhas, que eram suas, estavam nas costas da vítima; amostras do seu sêmen foram obtidas. Ou você arranja uma brilhante e engenhosa fábula para me convencer, ou vou ser obrigada a continuar achando que foi você quem matou aquela moça!
David baixou a cabeça, e nada disse. A julgar pelas horas sem nenhum tipo de avanço no caso, a detetive começou a cogitar a hipótese de que ele estivesse falando a verdade. Mas não podia ser; todas as evidências iam ao seu encontro.
– Vamos Deeper, colabore – incentivou Susana, buscando em seus olhos caídos uma resposta. – Ou suas três vozes não o deixam que fale.
– Eu não sei explicar a respeito dessas vozes – começou a falar baixinho o suspeito; seu olhar ainda alheio –, mas posso assegurar que não matei a Catherine; eu a amava!
– O que não quer dizer muita coisa...
– Acredite em mim... – disse com desânimo, entregue a fadiga. – Ninguém, ninguém nessa porcaria de polícia investigou direito? Não há outros suspeitos?
– Foi você. Só me diga e facilite tudo; para nós dois.
David se levantou ameaçadoramente, deu nova batida na mesa, e abriu a garganta o mais que pôde para gritar, numa voz rascante e tonitruante, que pareceu a Susana uma voz demoníaca: “Não fui eu!”. E para disfarçar o medo que a atingiu, ela encarou-lhe com ares de superior, mas na verdade tremia dos pés a cabeça. Ergueu-se e, antes de escapar da sala, disse:
– Se pensar bem a respeito, vai optar por me contar.
E David, mais uma vez, ficou sozinho na minúscula e opressiva sala de interrogatórios, junto às luzes tão ofuscantes e quentes que fazia sua mente fervilhar. Recordando às confusas sucessões de acontecimentos dos últimos dias, foi difícil encontrar lógica para explicar qualquer coisa. Mas não teve muito tempo para ficar realmente sozinho, pois logo vieram às vozes para servirem de companhia. Uma dizia para que ele se mantivesse calmo. A segunda, controladora e impulsiva, exigia que ele tomasse alguma atitude e recobrasse as rédeas da situação para si, mesmo que para isso se valesse de métodos cruéis. Já a terceira, conciliadora e fria, mandava para ele idéias, invenções e armações que capacitasse sua saída dali, sem precisar usar da brutalidade da segunda e nem da passividade da primeira.

Como sempre, o jovem David Deeper podia ser encontrado ali, deitado sob o gramado em frente à garagem da casa, escutando suas músicas melancólicas num fone de ouvidos. O céu estava em seu melhor tom: o alaranjado faiscante do pôr-do-sol, que se despendia por detrás do horizonte. Pensava, e esse pensamento era-lhe bastante recorrente, em montar estratégias que trouxesse a inacessível (pelos menos a ele) Catherine Camel para mais perto do seu mundo. Eles mantinham contatos quase que diários, ao se cruzarem pela rua, mas eram contatos de extrema casualidade. Nos últimos tempos mal trocavam cumprimentos, e nas vezes em que ela se aproximava, mostrando algum interesse, ainda que mínimo, David mal articulava um “oi”. Conhecia-a há três anos, e nunca deixou de nutrir esse amor mordaz, nem mesmo refreado ao constatar que ela migrava de namorado em namorado, e que jamais seria o próximo. Houve tempos, tempos incríveis, em que conseguiam sustentar uma conversa de meia hora, e permaneciam nesse ritmo talvez por uma semana. Mas o problema, concluía David mais tarde, estava na constância; ao manterem contato por um tempo, ele conseguia, mesmo que a duras penas, prendê-la e envolvê-la em seus assuntos; mas se ficassem sem se ver durante dias, ele perdia o prumo e, conseqüentemente, afastava-a de novo.
Certa vez, eles trocaram e-mails, nos quais David descrevera com brilhantismo o que sentia; entretanto, os resultados foram infrutíferos. No último e-mail, ela respondeu com gentileza que gostava que ele demonstrasse seus sentimentos (e David pensou que isso era óbvio. Pois quem é que, em sã consciência, odeia quando alguém diz que as ama?), e disse qualquer coisa muito furtiva, que nem soou como desdém nem muito menos lhe deu esperanças; foi um meio-termo que o deixou triunfante a principio, mas que ao longo do tempo virou tortura. Ela nem o maltratava, e assim acabava com aqueles sentimentos de uma vez por todas, nem o dizia, ao menos, que se tentassem, podia acontecer um relacionamento. E isso, David pensou algumas vezes, era o pior de tudo. Teve também a estratégia da mensagem de celular anônima, com o intuito de conquistá-la de tal modo, que quando chegasse a hora da revelação, ela não pudesse recusar o seu amor. Mas essa estratégia só resistiu à primeira parte; assim que enviou a primeira mensagem, achou que aquilo era uma atitude vil, e por medo de ganhar seu eterno ódio, tirou essa idéia da cabeça.
O plano atual era escrever uma carta, uma derradeira carta, que iria conter todos os seus mais obscuros pensamentos e sentimentos a respeito de Catherine. E então estava matutando como iria fazer isso, visto que nem ele próprio entendia sobre aquilo que sentia. Foi aí que entrou em uma grande angústia, e começou a se maldizer por ser tão passivo, tão retraído, por ser um idiota, que na verdade não merecia Catherine Camel, e nem nenhuma outra garota. E começou a se afundar dentro do seu desespero, até chegar a recantos desconhecidos em sua mente. Sentiu um desejo destrutivo, um desejo macabro, um desejo visceral de que tudo se danasse, de que tudo se exterminasse para sempre. Todo o seu corpo começou a tremelicar, e logo se contorcia em espasmos convulsivos. Seus olhos se reviravam nas órbitas, e tudo se apagou, bem como queria.

– Ele é tão jovem – Susana Mendes disse num suspiro; mantinha as mãos sobre o espelho de observação. – É incrível que tenha estragado sua vida por uma garota. Será possível que não tenha sido ele? – Ela parou de contemplá-lo, e se dirigiu a dois homens que estavam na saleta. – As vozes... ele pode estar louco.
– O que aconteceu, detetive Susana? – disse maliciosamente o tenente Kevin Dutra, um dos homens que estavam na sala. – Ficou sensibilizada com o garoto ou o grito que ele deu te assustou tanto que mexeu com suas percepções? Três vozes, hein? Mas Freud explica. Já ouviu falar em ego, superego e id...?
– Se vai continuar a bancar o engraçado, achando que isso melhora alguma coisa; com todo o respeito, tenente, eu dispenso.
– Bom, senhores – disse o segundo homem, o capitão Ted Bulks –, espero que vocês se entendam e consigam arrancar a confissão desse garotinho. Será que posso me ausentar por um tempo? – O tenente fez menção a se pronunciar, mas foi bruscamente interrompido pela voz do capitão. – Não, tenente. O senhor teve sua chance de interrogar o suspeito, e não vi sucesso em sua tentativa. Detetive Susana, a senhorita continua interrogando. Mas nem pense em cometer o erro de entrar lá sozinha de novo.
Dito isto, o capitão saiu pela porta.
– Então, alguma idéia brilhante, detetive?
Mas Susana estava perdida em pensamentos ao encarar o suspeito mais uma vez. É apenas um garoto. Bonito... Atraente, até. Como ele foi pirar desse jeito por causa de uma garota? O tenente Kevin, reparando no demasiado interesse da detetive sobre o garoto, disse em tom de crítica:
– Esse tipo de coisa acontece todos os dias. É só mais um crime passional, como qualquer outro; não há nada de especial. Por favor, não ponha tudo a perder.

David ergueu-se com normalidade, recuperou o fone de ouvidos que tinha caído e... sentiu um turbilhão de coisas percorrerem sua mente, numa velocidade incontável. Pensamentos intocados, proibidos, que quase nunca vinham à tona, suscitaram todos de uma vez, arrebatando-lhe o espírito. Até que controlou os ímpetos e passou a ouvir apenas àquilo que importava naquele instante. Uma voz interna reivindicava sossego, ordenando-o que desse meia-volta, entrasse para casa, e que fosse dormir até que obtivesse serenidade. Outra, impelia-o com toda a força na direção a que seus desejos estavam projetados. A terceira voz decretou que a segunda tinha razão, e que ele deveria procurar o seu amor. E lá se foi David, com um sorriso determinado, pela rua. Em instantes, havia chegado à casa vizinha, e tocou a campainha. Catherine atendeu a porta.
– Oi David – ela disse, com seu sorriso mais condescendente e afável; mas não havia motivos para ficar animado, aquele era o sorriso que habitualmente mostrava para todos. – Estou surpresa em te ver; afinal, já faz um bom tempo que não nos falamos.
– Não entendo sua surpresa; nunca me faltou vontade de falar com você, e sabe disso. Eu preciso conversar com você. Não se preocupe, vai ser rápido. A não ser que você deseje que minha visita dure mais tempo.
– Ah, sem problemas... Onde podemos conversar?
David pensou em dizer: “Você é quem sabe”. Depois lhe surgiu outra opção. Poderia dizer: “No lugar mais ardente que encontrarmos”. Mas por fim achou melhor dizer: “Qualquer lugar se torna ótimo quando estamos em companhia de pessoas ótimas”.
Ela sorriu e disse que seria muito bom andar pelo quarteirão enquanto conversavam.

– Então... é um assunto muito urgente?
– Digamos que eu tenha que falar coisas que durante três anos eu não pude falar. Bem, não dá para chamar isso de urgente, mas é justamente por ter demorado tanto que tudo se torna tão urgente.
Ela ia dizer algo, mas David previu que suas palavras seriam irreais e que só iriam ser ditas para encobrir as palavras que realmente queria dizer. Então se pôs à frente dela, e suavemente deslizou seu dedo indicador sobre seus lábios.
– Hoje é o meu dia de falar... – e se calou de repente. Tinha acabado de entrar em uma espécie de transe; estava diante da imagem mais bela que seus olhos podiam ver: a imagem paradoxal de Catherine Camel. Ele apreciou os seus cabelos castanho-aloirados, que desciam em correnteza, como num rio revolto e turbulento. Seu rosto era anguloso, e, delineado suavemente, transparecia elegantes formas. O sorriso – discreto, conciso e... inapreciável – dava a David a sensação de ficar mais leve que o ar, especialmente quando, no meio desse sorriso, ela fechava os olhos, e assim irradiava uma expressão sonhadora. Seus olhos, de um tom castanho levemente esverdeado, em combinação com o restante do rosto, descreviam-no qual o significado da perfeição; aqueles olhos eram imãs, que atraem e dilaceram toda a paixão que estiver em volta, e causa a David a agonia no limiar do prazer; o profundo sentimento de que sem isso não poderia viver. E para além de tudo isso, nada mais importava: ela era a quinta-essência do amor.
– Eu já disse que você é linda? – David disse, assim que conseguiu sair do seu torpor.
– Na verdade, não – ela respondeu, mordendo os lábios com apreensão. – O que está havendo? Você está tão diferente...
– É que não quero mais ficar invisível. Eu preciso lutar, porque o que mais quero na vida está fugindo ao meu controle, e eu tenho que fazer algo.
– Hum... No que posso ajudar?
– Me dando uma chance de me mostrar do jeito que sei.
– Eu nunca te neguei isso – ela disse, compreendo e, de fato, entrando na conversa.
– Tudo bem! – atalhou David, determinadamente. – Eu sei que sempre fui, em todas as ocasiões, muito inexpressivo; mas agora eu conheço um jeito de te fazer feliz. Acredite, eu posso ser a pessoa mais carinhosa desse mundo. E não vou falhar de novo. Eu te amo, Catherine!
– Eu sei. E é por isso que eu deixo você quieto, e não dou esperanças. Não quero que me odeie, eu gosto muito de você. Mas você tem seu jeito, seu modo de agir... Você nunca se mexe, você nunca faz barulho! E eu não sei o que pensar.
– É, mas isso vai mudar. Você mesma reparou nisso... – E pegou-lhe por uma mão. Ao que ela parou, David envolveu-a em um abraço terno e ao mesmo tempo voraz, que a fez sentir todo o seu sentimento. – Eu sei disso tudo, porque apesar de eu viver encarcerado na minha mente – aí o abraço terminou –, eu sou mais realista do que qualquer um. Eu só desejo que você se esforce um pouco; que me ajude a ser aquela pessoa com a qual você sonha encontrar. Porque eu posso!
– Mas eu ainda estou me perguntando... Como posso ajudá-lo nisso?
O primeiro pensamento que se instaurou na mente de David foi: “Me ajude com paciência”. A segunda resposta dizia: “Eu quero ter você. Eu quero sentir você o mais próximo possível de mim. É só deixar rolar e ver o quanto sou talentoso”. A terceira alternativa, muito mais efetiva, apenas fez a ligação entre fala e desejo:
– Me ajude, deixando-me ficar por perto. Quero que tenha tranqüilidade para saber o que estou querendo dizer, mesmo que eu pareça confuso. E se puder, não se feche tanto, pois isso faz eu me fechar também. Só assim você sentirá o maior amor do mundo!
Catherine, começando a se impressionar com o novo jeito David de ser, respondeu com sutileza:
– Eu tenho ciência do quanto você me ama... na verdade, sei que ninguém me ama tanto assim. Eu consigo sentir isso; eu sei. Mas você deve saber que...
– Só o amor não é suficiente, eu sei – suspirou David. – Sei também que o fato de estarmos afastados se deve ao meu jeito tímido; mas aqui estou, não mais tímido, tentando, do melhor jeito possível, fazer com que todas as barreiras entre nós se nulifiquem. E eu não sou tão ruim assim, sou?
– Não, não é – disse Catherine, abrindo um sorriso.
Depois disto, o silêncio caiu sobre eles. E continuaram a caminhada sem se encararem. Quando estavam prestes a alcançar o fim da rua, Catherine sugeriu que se sentassem na calçada – e assim o fizeram.
– Sabe, estou impressionada.
– Sobre o quê?
– Ah, não sei... comigo... com você... com todo esse amor. Em parte, a culpa é minha. Você merecia, nem que fosse...
– Não fale em merecimento! Nesses casos, isso soa como compaixão.
– Bom, não é exatamente isso – ela disse, olhando-o com mais atenção. – É que, pela lógica, nós deveríamos amar de volta aqueles que nos amam. Quero dizer, eu penso assim. Mas talvez eu não tenha te levado a sério, de modo que não me preocupei muito com você. E agora eu vejo que perdi algumas coisas. Um amor como esse, teria rendido frutos. O que quero dizer é: eu acho que segui para um lado; um lado bom, admito; mas com isso, deixei de ver você, que, da sua forma, me faz bem.
– Com isso, então eu posso considerar que você aceita o meu acordo?
– Não sabia que era um acordo...
– Talvez para alguém como você, a palavra “acordo” seja a mais apropriada...
– Como assim? – ela o interrompeu. – O que eu tenho que faz com que isso se torne um acordo?
– É que, segundo o meu entendimento ou... sei lá... talvez o que espero que você venha a dizer.... Bem, eu acho que você vai tentar fazer com que as coisas dêem certo para nós! E como até então você não fez isso, pois você é bastante fria comigo, eu acho que isso é um acordo devido a sua mudança de comportamento. Porque um acordo nada mais é do que ceder de um lado, e atender ao que se quer de outro.
– Mudei meu comportamento porque vi que você mudou também; mudou tão de repente que mal posso compreender. E sobre eu ser fria: não é só com você. – E aí, quase que perdia o fio da meada; vários pensamentos lhe percorreram. Nunca havia parado para pensar em si mesma, em sua identidade, eventuais defeitos ou qualidades; apenas vivia de acordo com o que achava certo, sem se ater a personalidade, pois todos possuem uma; e entrar nesses aspectos, mesmo que fossem os seus aspectos, não era coisa que apreciava. Meio incerta, voltou a se pronunciar: – Eu sou assim mesmo, não tomo a iniciativa nas coisas, e espero as pessoas chegarem até mim para que eu faça alguma coisa...
– Sabe qual é problema? – David viu a expressão desentendida dela. – Somos parecidos; nós dois somos quietos demais. Dessa forma, não conseguimos nos manter unidos. Você precisa de alguém incisivo! Mas não se preocupe, eu posso fazer isso. – Olhou-a com um olhar de cobiça e paixão.
Uma vontade sem rédeas tomou David; uma vontade de acariciá-la, de tê-la para si, uma ardente vontade de transmitir, de todas as formas possíveis e imagináveis, todo o seu colérico e letal sentimento. Essa vontade louca foi controlada por alguma outra coisa em sua mente: sua camada receosa e covarde. Mas, mesclando ambas as sensações, transformou-as em uma nova e única sensação, e esta mandava que ele a tocasse e transmitisse um amor despretensioso e gentil, na dose meticulosamente adequada.
Enfim decidido, aos poucos foi tocando-a; começou dos cabelos, deslizando seus dedos lenta e delicadamente; logo acariciava-lhe a face, o que a fez sentir um especial carinho; e tudo culminou em um longo, pesado, e desejado abraço, que durou tempo suficiente para que um pudesse pesar a carência do outro.
– Então, como vai ser de agora em diante? – interveio David, em meio às caricias.
– Bem... vamos continuar nos vendo; temos um acordo. Eu vou prestar mais atenção em você, e você vai tentar continuar próximo. E se quer saber, eu acho que pode dar certo; para isso, só precisamos gostar da companhia um do outro, e... Meu Deus, eu tenho que ir! Perdi a noção do tempo.
– E para onde você vai? – ele perguntou, se afastando um pouco.
– Eu tenho... eu tenho que fazer umas coisas... – Catherine levantou da calçada, e avançou uns passos. Ao ver o olhar inquieto de David, ela retrocedeu em sua caminhada. – Ei, a gente se vê mais tarde. Fique com a garantia que esse é um novo começo entre nós. Não se preocupe, não vai se livrar assim tão facilmente de mim.

David experimentou uma onda de intensa repugnância invadir o seu ser. Ao ter consciência de tudo o que fez – que tinha matado sua grande paixão e, com isso, matado sua própria capacidade de viver, sentiu pavor de si mesmo, sentiu-se indigno de fazer parte do mundo. Como é que ele, uma pessoa tão alheia e apática, fora capaz de cometer um crime deplorável daqueles? Ele ficou estático por um intervalo de tempo, como que para absorver a totalidade dos seus atos. De repente, exaltou-se e começou a bater na mesa; num impulso de brutalidade, virou-a e aí... sucumbiu ao terror. Sua respiração acelerou, cada ponto do seu corpo vibrou, lágrimas soluçantes lhe chegaram. Chorava, chorava como um bebê, que desprotegido perante o mundo, não sabia em que buraco se enfiar para se livrar das terríveis lembranças.
Susana Mendes entrou na sala de interrogatórios como um raio, transbordando fúria pelo olhar.
– Que tipo de monstro é você?! – gritou Susana. Não reparou na mesa revirada; nem na proximidade de David; muito menos em seu choro imbecil e em seu olhar perdido.
A resposta de David não veio em palavras. Ele se agarrou a detetive, buscando nisso um consolo quase maternal. Susana, por sua vez, oscilou entre o medo e o nojo. Essa reação a surpreendera de tal forma, que, muda e paralisada, apenas deixou o rapaz ali, a aplacar suas sensações, como se fosse o mais inofensivo dos seres.
– Deeper – ela perguntou minutos depois –, por que você fez isso? Você tinha muitas oportunidades na vida. É jovem... é...
– Você não sabe – David gritou sob o seu soluço, se desvencilhando abruptamente daquele quase abraço que formavam – o desespero que é querer uma coisa da qual é impossível se ter! Você não sabe o quanto é duro ver a pessoa que lhe dilacera a alma, fazer tudo o que você sonhou fazer com ela; mas com outra pessoa – e aí desandou em seu choro. – E você não conhece o sentimento infeliz de amar alguém que só te despreza!
Por algum misterioso motivo, a detetive Susana Mendes deixou uma lágrima de piedade rolar pelo rosto, que adquiriu uma coloração ruborizada.
– O que pensa que está fazendo, detetive? – se lançou até a sala o tenente Kevin Dutra; a arma em suas mãos apontada para David. – Isso não é uma despedida! Esse miserável...
A frase se perdeu no ar, pois David tinha acabado de se jogar contra o tenente e tomado sua arma. Foi então que todas as vozes da sua mente, de comum acordo, decidiram que ele deveria pôr um fim em sua vida. E após cerca de três segundos de hesitação, posicionou a arma contra a cabeça e disparou; um tiro sem chance de erro. David (ou apenas o resto do que dele sobrou) caiu morto, e o seu tormento teve enfim um fim.

Depois da conversa que teve com Catherine, David se sentia radiante. E ali estava, novamente sentado em frente à garagem da casa, sob a ociosidade que a alegria trouxe; fatiava uma maçã com uma pequena faca. No meio de uma mordida, aconteceu uma coisa que revirou seus sentidos de uma hora para outra; ele tinha visto o namorado de Catherine tocando a campainha da casa. E duas vozes totalmente antagônicas acentuaram-se em sua cabeça; a primeira foi uma voz já bastante habitual: uma triste voz, egocêntrica e solitária, que dizia calmamente para ele se manter na sua, pois qualquer coisa que fosse fazer, não traria nenhuma solução imediata; a segunda voz, forte e desenfreada, se inquietava torturantemente para que alguma, mesmo que drástica atitude, fosse tomada. Havia ainda uma terceira voz, a mais ponderada delas; mas esta não se manifestou. Resultado: a primeira voz não conseguiu cessar aquele grito imperativo da segunda.
A atmosfera a sua volta ficou absolutamente caótica, e David não mais controlava o que queria fazer; tudo sucedeu depressa. Correu raivosamente e atingiu o namorado de Catherine com um soco potente, e ele tombou sem reação. Aproveitando-se da faca que tinha em mãos, manuseou-a sem muita perícia na direção do rapaz, que a essa altura já estava quase desacordado, ainda devido ao soco. Foi então que Catherine apareceu á porta:
– Que é isso?! – o desespero retratado em sua expressão.
Sem parar para esperar algo ocorrer, David pulou para cima dela, e ambos foram ao chão. Nada daquilo fazia sentido para Catherine, e, assustada, somente gritava frases indistintas. Isso, porém, serviu apenas para que o seu agressor se enfurecesse ainda mais; e ela se viu face a face com a fúria que escapava por todos os lados.
– E agora, que importância eu tenho para você?
– David, o que está havendo? O que eu fiz? Vá embora, vá embora!
Mas aquele apelo foi por água abaixo. David puxou a faca e investiu contra Catherine, que ainda tentou se defender, mas foi em vão; ela não pôde conter sua força. Ele tentou forçar o gume da faca no pescoço da vítima, e não conseguindo, levantou a faca no ar e, violentamente, desferiu novo golpe, e desta vez cravou-lhe a ponta da faca bem no meio do seu pescoço. Catherine tentou gritar, e nenhuma voz foi emitida. Então seu sangue começou a transbordar, e enquanto estava ali, meio viva e meio morta, David tirou-lhe a roupa e fez a coisa mais horrenda e grotesca que alguém poderia fazer...

Nós, em nossos altos e baixos, chegamos a lugares que não queremos, e usamos de artimanhas que não são as nossas. Mas o que faz as mudanças radicais e os desejos incontroláveis brotarem? Podemos chamar de falha generalizada da índole.
Só temos que atentar para um detalhe: isso pode acontecer com qualquer pessoa.